domingo, 5 de setembro de 2004

O aborto do aborto [II] [30.08.04]

A Esquerda tem uma certa tendência traumática e depressiva, por força de suposições que confunde com factos, como quem confunde apuro com lucro. E esta ideia de que se é democrata e depois não se é capaz de aceitar os resultados das urnas, além de hipócrita é falaciosa. O povo escolheu, ou preferiu não escolher, como queiram, agrade ou não. A mim não agradou, mas como democrata tenho de viver com isso. E certamente muito pior vive com isso quem não quer, ou não pode, prosseguir com uma gravidez indesejada.
É óbvio que não me agrada ver os ditos “movimentos a favor da vida”, cujas designações e discursos visam, constantemente, classificar o aborto de infanticídio e confundir despenalização com liberalização. Movimentos, esses, que quase sempre surgem na televisão representados por homens a falar com tal desembaraço e consciência, como se tivessem ovários. E em relação aos quais sempre gostaria de saber onde se encontram dia-a-dia na alegada “defesa da vida”: estarão nos bairros sociais? Juntos das classes mais desfavorecidas? Nas escolas? Andam em campanha de planeamento familiar porta-a-porta?
Quanto à decisão do Governo ela é eminentemente política, sem base jurídica credível, como é evidente e qualquer jurista isento assim o dirá. Mas é uma decisão que, atendendo à composição do actual Governo, até compreendo: seria preferível deixar o barco aportar e fazer controlo das entradas e saídas, para que se certificasse que não havia qualquer actividade criminosa em curso? Seria preferível repensar o nosso quadro normativo vigente por imposição não do povo mas de uma qualquer organização estrangeira?
Creio que este Governo, sublinho este Governo, não teria outra possibilidade de actuar. Sob pena de, um dia mais tarde, ficar refém, por exemplo, de um “Barco das Drogas”.
Lamentavelmente, o “Barco do Aborto” transformou uma causa num caso, fazendo da polémica e do “share” o ponto de partida para discussão. Estão a passar ao lado, os verdadeiros argumentos de defesa da despenalização do aborto, à medida que somos levados a assistir no sofá a um braço-de-ferro entre o Governo e a Women on Waves. A matéria já não é do povo, nem sequer das mulheres: a matéria agora é, basicamente, das televisões, com ganhos evidentes para quem defende a manutenção da actual lei.

J. Mário Teixeira [
j.marioteixeira@sapo.pt]