segunda-feira, 18 de outubro de 2004

“O que ele quer…” – Uma história do Zé

Corriam os dias da adolescência e o hábito semanal do Zé de espreitar o que uma papelaria da Rua de Costa Cabral tinha para vender no mundo dos livros. Era uma paragem quase obrigatória para tentar, vezes sem conta, encontrar um título apelativo, até mesmo uma capa arrojada ou algo fora do comum.
Aquele não era o único sítio. Ao tempo, a sua militância partidária no PEV, curta mas intensa, levava-o rotineiramente a sair do trólei no Bolhão, descer a Rua do Bonjardim em direcção à Praça D. João I, onde tomava depois rumo à sede do Partido, na Travessa dos Congregados. Precisamente na Rua do Bonjardim, nas traseiras do palácio dos correios, por entre lojas de serralharia, um alfarrabista fazia as delícias de qualquer um que apreciasse livros de capa amarelada ou queimada pelo pó, de folhas salpicadas pela humidade, com dedicatórias, anotações. A busca de uma qualquer primeira edição, de uma qualquer tradução. Só gostando se percebe.
Naquelas horas, o Zé acabava sempre por perder a pressa que levava, para depois aumentar na pressa com que ficava. Era sempre assim, sem excepção.
Certo dia, de chuva intensa, a pressa começara bem cedo dentro do trólei apinhado, de vidros embaciados, ar denso e quente. O gigante vermelho andava a conta-gotas, ao contrário dos ponteiros do relógio que não abdicavam dos seus perenes e ritmados movimentos. Na ideia apenas duas coisas: o alfarrabista e a reunião do Partido. Liberto da masmorra ambulante, esgueirou-se do Bolhão até à Rua do Bonjardim e refugiou-se nos livros. A chuva caía, fazendo pano de fundo às buzinas que se propagavam de carros em fila que não se moviam.
Por ali ficou algum tempo, com a desculpa moral de que chovia muito e sem guarda-chuva mais valia esperar que amainasse. Entretanto os livros, os autores, as edições, as texturas, o pó. E o tempo que passava. O dever que se impunha acabou por impeli-lo para a rua, onde o baile dos transeuntes de guarda-chuva se fazia por entre as goteiras das caleiras velhas e dos canos rotos. Decidiu-se, por isso, descer pela rua. Má ideia: bastaram 20 metros de empedrado molhado, para participar na reunião com dores que horas mais tarde o levariam à urgência do Santo António.
Dias depois, acompanhado de um colega seu, o Zé contou o episódio ao dono da papelaria de Costa Cabral após ter pago os dois livros que acabara de comprar. No seu tom gentil, o dono confirmou que nestas coisas acabamos sempre por comprar mesmo que não tenhamos tempo de ler tudo. O Zé anuiu.
Saíram da loja, tomaram o caminho da paragem e o Zé comentou com o seu colega, que se mantinha em silêncio, aquela ideia da compra compulsiva de livros, partilhada pelo dono da loja. O colega fitou-o e disse com ar sério e determinado: “O que ele quer é vender livros…”.

j.marioteixeira@sapo.pt