terça-feira, 18 de janeiro de 2005

Sinais dos tempos de hoje [VII]

Demorei a decidir-me se escreveria sobre isto ou não. O resultado está claramente à vista.
Passar por um grupo de estudantes do liceu à conversa e ouvir a seguinte frase de um deles: “O meu pai tá-se a cagar, agora a minha mãe… puta que a pariu…”.
Seria algo que deveria despertar, no mínimo estranheza. Mas não. Ninguém olhou, ninguém fez qualquer comentário. Ninguém manifestou qualquer reacção. Excepto eu que acabei por olhar para o autor de semelhante “pensamento”. Olhei, apenas, num misto de espanto e de descrença no que acabara de ouvir. Fui o único, todos os demais transeuntes continuaram mecanicamente a sua rotina.
Alguns minutos depois, já ao volante, fazia “escolta” a um ciclomotor onde ia um casal e, no meio, uma criança voltada para trás, sem capacete. O seu olhar vivo, alheio ao perigo evidente em que viajava, fixou-me e começou a dizer-me adeus com a sua mão pequenita. Não fui capaz de resistir a tamanha graça e correspondi, diversas vezes. Certamente numa figura de parvo para quem me estivesse a ver, mas enfim. Foi curto o caminho que nos levou à separação de rotas e não mais vi o puto.
Afinal de contas o que é que nos choca e o que nos seduz? Será ainda aquilo que vemos todos os dias, ou apenas o que nos mostram?
Porque nos tornamos mais activos e solidários com a miséria longínqua do que com aquela que coabita connosco nos cenários das nossas rotinas?
Que sociedade é esta que estamos a criar?
Percebem agora porque demorei tanto tempo a decidir se escreveria ou não sobre isto? Dois episódios sumários e seguidos foram o bastante para me rodear de dúvidas. Destas e de muitas mais. Tantas, que até quase esquecia como tudo começou: com uma frase e um aceno.

j.marioteixeira@sapo.pt