terça-feira, 12 de abril de 2005

“Há algo de podre no reino da Dinamarca”

A afirmação é de Hamlet, mas vale como metáfora aos dias de hoje. É daquelas coisas que atestam a intemporalidade.
A notícia de que a maçonaria detém um registo de 3600 agentes, informadores, bufos, ou que se queira chamar, da PIDE/DGS e que agora pondera entregar ao Estado, salvaguardada que seja a identidade dos que ali constam, levanta um claro abanão na consciência colectiva e uma necessidade de confrontar as consciências com o passado.
Falar em paz social como argumento à não divulgação dos nomes em causa, levanta sérios problemas de consciência e de medo civilizacionais. Até que ponto estamos dispostos a perdoar, a esquecer e a enterrar, ou não teremos nós o direito de que se exponha quem nos fez mal ou aos nossos?
Até hoje vivemos numa aparente reconciliação com o passado, reflexo de algum romantismo que ainda envolve a Revolução de Abril. A reposição das liberdades individuais, da participação popular, da livre associação, como que satisfizeram as nossas necessidades de libertação e de mudança.
Mas será que isso hoje chega?
A sociedade mudou muito da Revolução dos Cravos até hoje, as mentalidades, as necessidades, as ambições. Os ideais históricos endureceram-se em datas de celebração e as conquistas em garantias rotineiras. Mas hoje temos de nos confrontar com o passado, que se pensava enterrado, mas que não estava. O passado nunca está enterrado, nem sequer é sombra. Faz parte da matéria do que somos feitos, está incorporado em nós e sem ele não somos inteiros.
Temos, pois, que viver, com o passado, numa de duas opções: confrontando-o ou evitando-o.
O argumento da paz social para sustentar a confidencialidade, não pode fazer esquecer o sofrimento causado por inúmeras denúncias, as perseguições, as castrações e as mordaças. Mas também não vale para esconder legítimas diversas interrogações, como: qual a veracidade de tal registo e porque é que só agora veio à luz do dia?
Não debater esta matéria é criar uma paz podre, em que alguém confortavelmente decide por nós e nos alivia o peso da responsabilidade. Debater esta matéria carece de coragem e de consciência. Quer um quer outro são perigosos caminhos, manipuláveis e escorregadios. Ficamos, pois, reduzidos à decisão de nos confrontarmos ou não com o passado, para podermos perceber um pouco mais cerca do que somos nós agora.

j.marioteixeira@sapo.pt