terça-feira, 31 de maio de 2005

Ainda o referendo e as autárquicas

A simultaneidade de votação em eleições [quaisquer que sejam] e referendos desvirtua a razão de ser desta última consulta popular.
Quando o poder político entende por bem que determinada matéria seja objecto de consulta popular devido ao relevo da mesma [seja relevo social, político, económico, civilizacional, ou outro], significa isso que entende necessário que seja a própria população a pronunciar-se atendendo aos interesses em causa. Tratando-se de matérias de especial relevo, significa que as mesmas suscitam dúvidas, interrogações, e, especialmente, divergências na sociedade que a consulta popular irá sanar dando legitimidade à posterior decisão política. Daí a razão de ser do regime jurídico do referendo e dos seus cuidados em estabelecer vínculos mediante a participação e o sentido da votação, bem como da importância na formulação da questão a colocar à expressão popular.
Temos, assim, que as matérias sujeitas a referendo, ao importarem especial divergência no seio da comunidade, suscitam ao poder político a necessidade de ser a própria comunidade a assumir o encargo da decisão, da opção. Exactamente porque as matérias em causa suscitam divergência, polémica, é que o poder político entende não assumir a responsabilidade de tomar uma decisão [política, legislativa, jurídica, económica, etc.] sem que haja pronúncia por banda da população. E, também, por isso, uma vez que a população é chamada a decidir, deve esta decidir em total liberdade, o que acarreta esclarecimento, que só poderá advir de debate e discussão o mais ampla possível. Sem esclarecimento do que está em causa, sem o espaço ao confronto de ideias e de opiniões, teremos uma votação inquinada pela ignorância, pela manipulação e pelo preconceito.
Assim sendo, torna-se incompatível com a essência do referendo a sua simultaneidade com eleições, não importa a que se reportam estas [legislativas, autárquicas, presidenciais ou europeias]. Incompatível não do ponto de vista jurídico mas do ponto de vista político. E o referendo é, essencialmente, um instrumento político de profunda importância numa sociedade estruturada como Estado de Direito Democrático, em que se valoriza a participação e auscultação popular e o debate de ideias.
A realização de um referendo, seja ao aborto ou à Constituição Europeia, implica serenidade e esclarecimento, o que de todo é incompatível com a simultaneidade de actos eleitorais que desviam as atenções e o debate para as naturais e inevitáveis guerras político-partidárias numa óptica de conquista ou manutenção de eleitorados.
Só há uma aparente vantagem na simultaneidade de referendo com actos eleitorais: a ilusória participação popular. Ilusória porque se tenta obviar à abstenção nos referendos, do modo mais fácil e cómodo, para bem da leveza de alguns consciências. Ilusória porque a participação será "empurrada" e não "estimulada". O que se tornará um perigoso precedente político para futuros referendos, quaisquer que sejam as matérias a que se refiram.

j.marioteixeira@sapo.pt