sexta-feira, 22 de julho de 2005

Entrelinhas

Tornou-se evidente nos últimos dois dias que a demissão de Campos e Cunha resulta do seu artigo de opinião, em que se demarca da visão de investimento público com que se orienta o actual Governo. E que o artigo marca de modo definitivo uma clivagem na coesão do Governo, a que Sócrates não poderia ficar, nem era, alheio.
O artigo de Campos e Cunha é um manifesto pessoal de uma visão própria do que deve ser o processo da consolidação das contas públicas nas suas vertentes de contenção de despesa e de investimento público.
É evidente que na lógica do artigo de Campos e Cunha, o TGV não era investimento prioritário. E não era porque não há a “prévia análise de rentabilidade”, e porque o “investimento público deve dar prioridade aos projectos com maior rendibilidade económico-social possível”. Afirma, ainda, em conclusão no seu artigo:
O crescimento económico depende ainda, crucialmente, de vários factores como sejam a qualidade das leis, o funcionamento da justiça, a estabilidade das leis fiscais (só possível com finanças públicas em ordem) ou o nível de educação científica e técnica.
Portugal enfrenta desafios urgentes. Em acusa está o seu desenvolvimento e a necessária manutenção do Estado Social. Resolver o problema das contas públicas é apenas a condição necessária. Mas não é suficiente
!”
Leia-se bem o que escreveu Campos e Cunha, está tudo lá. Está nas entrelinhas, o local onde as coisas só são lidas se houver vontade/interesse em tal. Está lá a sua oposição ao TGV e, por isso, a sua impossibilidade de permanecer no Governo. Porque entre o caminho que Campos e Cunha traça para o país e as opções do actual Governo, existe a barreira intransponível da concepção de investimento público.
O que não é compatível com a ideia de equipa que Sócrates quis dar aquando da formação do Governo. A equipa que Sócrates sempre afirmou que era a que queria. Fica por saber como é possível que algo como o investimento público do TGV não fosse um dos pontos definidos logo à partida.
A verdade é que Campos e Cunha paga o preço por não ser político. Os “políticos” fazem questão disso. Primeiro por ter revelado fora do “tempo político” [os mais sofisticados dizem “timing político”] que Sócrates não iria cumprir com a promessa eleitoral de que não subiria os impostos. Depois foi por não ter afastado de todo a possibilidade de nova subida dos impostos até ao final da legislatura. Por fim porque revelou, na qualidade de Ministro das Finanças [imagine-se a afronta], a sua visão de investimento político, de contenção da despesa pública, e da correlação de ambos em sede de consolidação das contas públicas.
Mais do que uma demissão, para Campos e Cunha é uma libertação. Para nós é a certeza de um regresso a um rumo repetido dos últimos 30 anos: investimento público sem rendibilidade económico-social. O que na linguagem popular se chama de elefantes brancos. Acolhamos mais este.

j.marioteixeira@sapo.pt