sexta-feira, 26 de novembro de 2004

A propósito da pergunta do referendo

Esceve Vital Moreira sob o título “O Refrendo(4): O engulho”, sobre a questão de incluir ou não a Carta dos Direitos Fundamentais na pergunta do referendo. Parece ter real importância, uma vez que se pode pensar que quem vota “Não” está contra a Carta, o que não é propriamente verdade.
Dada a redacção limitativa da nossa Constituição, não se poderá referendar naqueles que seriam os termos mais honestos, do género: “concorda ou não com adopção da Constituição Europeia”. Sem mais.
Ora, uma vez que a Constituição parece não admitir tal possibilidade [e digo “parece” porque Jorge Miranda já defendeu o contrário, logo não há unanimidade doutrinal acerca desta matéria, ao contrário do que parecia] resta encontrar uma pergunta que abordando as matérias constantes no Tratado, nos seus traços essenciais, dê para “apurar” se há concordância ou não em ratificar o Tratado em questão.
Precisamente a Carta dos Direitos Fundamentais é uma das matérias constantes e de relevo. Mas colocá-la em primeiro poderá não parecer de todo correcto, pois é possível que reforce a predita ideia de que quem vota “Não” à ratificação está contra a Carta.
Pode-se então perguntar: se for a última matéria a ser questionada também não se poderá concluir que quem votou “Não” votou contra a Carta? Possivelmente.
Ao fazer-se uma pergunta abrangente, a decisão de “Sim” ou “Não” será obrigatoriamente redutora: pode-se concordar com a Carta e com o que ela representa em termos de consagração de direitos de todos os cidadãos dos diversos Estados-membros, mas estar-se contra a ratificação do Tratado por diversas razões [nomeadamente as que escrevi aqui]. É perfeitamente legítimo.
Pode-se então dizer, também: se a pergunta fosse “concorda com a ratificação do Tratado Constitucional Europeu”, quem votasse “Não” também poderia ser interpretado no sentido que é contra a dita Carta.
Não, não se pode e aqui é que as coisas mudam.
Votar “Não” à ratificação significa que não se quer o Tratado, não quer dizer que não se quer a Carta. É que a Carta dos Direitos Fundamentais já existia, independentemente de qualquer Constituição Europeia. Agora, se era ou não observada, respeitada pelos Estados-membros, isso já é outra coisa. Se querem verdadeiramente vincular os Estados-membros à Carta, é uma matéria com interesse, mas daí incorporá-la num Tratado para servir de argumento aliciante ao todo, já não colhe.
Decididamente, seja qual for a pergunta que se irá colocar em sede de referendo, o consenso será meta impossível, porque “o que nasce torto tarde ou nunca se endireita”. O que aqui nasce torto é que não se possa ser claro e objectivo no que se quer verdadeiramente referendar: o Tratado Constitucional Europeu. Daí que acabe por concordar que, sendo defensor do “Não” votarei contra a ratificação, qualquer que seja a pergunta. Mas sendo assim, por mínimo sentido democrático, então também vale dizer que os defensores do “Sim” não têm razão para estarem preocupados com as “nossas” críticas à formulação da pergunta do referendo: seja qual for a pergunta, irão sempre votar no sentido favorável à ratificação! Logo, este é o tipo de argumento que não serve para ser arremessado contra o oponente, pela simples razão que estamos no patamar das convicções.
Porque razão, então, estou eu preocupado com a pergunta do referendo se já decidi a resposta? É fácil: pela aparente impossibilidade de uma resposta directa e clara há que decifrar os sinais, e quanto mais claros e distintos forem os sinais, melhor. Porque no momento de votar, nem todos estarão a fazer por convicção. Muitos estarão a fazer por convencimento. Daí a necessidade de clareza e consciência quanto ao que está em causa: não os aspectos fraccionados em que se estará de acordo mas sim o que significa dar o acordo a todo o conjunto de aspectos.

j.marioteixeira@sapo.pt